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segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Divagações sobre grades e fantasmas particulares


por Isabela Saboia



Tenho um gato e um cachorro. O gato morre de medo do cachorro e vice-versa, mas, quando um dos dois está preso, não há nada que o outro goste mais de fazer do que observá-lo. Separados por uma grade ou por uma porta de vidro, os bichos são capazes de passar horas se exibindo silenciosamente um para o outro. O cachorro parece que diz "Olha como eu sou grande e poderoso!". O gato parece que responde "Olha como eu sou limpo e independente!". É muito engraçado olhar pra eles: cada um convencido de sua própria superioridade existencial, mas ao mesmo tempo fascinado e hipnotizado pela presença (provocante e ameaçadora) do companheiro.

Outro dia, comecei a pensar sobre histórias de prisioneiros e imediatamente essa imagem me veio à cabeça. Queria entender o motivo pelo qual figuras como Prometeu ou Tântalo exercem tamanho magnetismo sobre nós. Basta que observemos o sucesso de livros como O Conde de Monte Cristo, O Estrangeiro ou O Diário de Anne Frank, para percebermos que a idéia de aprisionamento físico, ao mesmo tempo que nos traz sentimentos instantâneos de angústia e aversão, é muito atraente.

Antes que vocês façam confusão: não contei a história dos meus bichos porque os considero prisioneiros ou algo assim, mas porque acho "humaníssima" a mistura de medo e atração que eles sentem um pelo outro. Todos nós prezamos pela vida, pela confiança no próximo, pela facilidade de ir e vir. No entanto, "morte", "traição" e "prisão" são temas altamente recorrentes na nossa literatura. O homem morre de medo de ser assassinado, traído ou preso, mas ao mesmo tempo sente uma vontade constante de falar e ler sobre esses assuntos.

Daí, concluo que o livro cumpre o mesmo papel da grade ou das portas de vidro que separam o meu gato do meu cachorro: ele faz com que a gente toque nos medos sem de fato vivenciá-los; faz com que a gente sinta o gostinho dos nossos desejos mais perigosos e arriscados sem de fato nos oferecer perigo ou risco.

- Ora, senhor Freud, mas quem disse que eu algum dia desejei estar acorrentado feito Prometeu? Eu lamento profundamente o triste fim de Policarpo Quaresma, e jamais invejaria o coitado do Jean Valdjean, que, por ter roubado um pedaço de pão, passou 19 anos atrás das grades!

Ok, a gente pode até achar que a nossa vida é superior à desses caras e que eles são dignos de pena, mas precisamos assumir que eles possuem algumas características que todos gostaríamos de possuir. Em primeiro lugar, há a coragem que em determinado momento esses sujeitos tiveram para enfrentar as leis sociais e seguir os próprios instintos. Outra característica invejável dos enclausurados é a força, afinal eles precisaram aprender a conviver com o tédio, com a solidão e com os próprios fantasmas. Por mais paradoxal que possa parecer, quem está preso goza de uma liberdade que nós, fisicamente livres, jamais experimentaremos. Impedidos de viver feito gente normal, cheia de vínculos e obrigações cotidianas, os prisioneiros estão livres para - digamos - existir com mais fluência. Eles têm tempo para pensar a fundo sobre as coisas e para senti-las até o fim. Fora isso, quem está preso já não precisa dar satisfações a ninguém.

Há um pedacinho do meu gato que gostaria de enfrentar o meu cachorro, assim como há um pedacinho de nós que gostaria de ser preso. Mas é um pedacinho pequeno, e a gente é prudente, né? Livros, grades e portas de vidro são bons porque evitam bobagens.



Em tempo:  Meu cachorro, Zeca, tem umas alergias bizarras, que quando aparecem deixam partes de seu corpo em carne viva, causando fortes dores.  Dia desses, ele estava um bagaço, nem quis se alimentar.  Daí à noite eu fui dar uma olhada nos machucados e não acreditei no que vi.  Lembra daquele gato que nunca ultrapassava a grade?  Pois lá estava ele, do lado de cá, dormindo com o cachorro.  Achei a cena incrível e comovente e quis compartilhá-la.  Pena que, quando voltei com o celular, os dois já tinham desfeito a pose.




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