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quarta-feira, 22 de julho de 2015

Eu, meu avô Zé e o cinema

por Thiago Ortman

Aquela era uma noite quente de meados de novembro em Belo Horizonte. Apesar de estar chovendo, fazia calor no quarto de hospital sem ar condicionado e eu me encontrava deitado no sofá. Na cama ao lado, o vô Zé. Ele havia me dito para dormir um pouco, que estava tudo bem, mas eu não conseguia pregar os olhos. Passava pela minha cabeça a certeza de que aquela seria a última vez que teria meu avô vivo. Enquanto esperava minha tia Cacá retornar com a Tita, outra tia que acabava de chegar de Bruxelas para ficar com meu avô, rememorava todo aquele dia. Por algum motivo o exercício me fazia bem.

Minha tia não estava presente na hora do almoço, então fui eu quem deu a comida a meu avô. Já começava a preparar minha ida a Buenos Aires, onde ficaria por três meses fazendo alguns cursos de cinema, e o vovô Zé, que sempre foi um viajante, gostava de conversar sobre esse assunto. Repetia de hora em hora que eu devia ler Borges, estava seguro que eu iria gostar e me parecia algo certo a se procurar em Buenos Aires: a literatura de Borges. 

A viagem foi o tema principal, mas é claro que assuntamos um pouco sobre cinema - algo que ele entendia e, acima disso, amava. Nunca esquecerei o dia, em uma das oportunidades que estive em BH, em que ele me levou ao camelódromo da cidade para que eu conhecesse um vendedor de DVDs piratas que só trabalhava com clássicos do cinema - tudo na base dos R$5. Como se tivesse descoberto um tesouro, ele me mandava comprar todos os filmes que eu quisesse, que ele pagaria e mais a frente poderíamos trocar entre nós. Eu achava graça naquilo tudo porque, àquela altura, já conseguia todos os filmes que queria baixando na internet, mas para deixá-lo feliz comprei uma dúzia de DVDs.

Vovô Zé
Outro momento bem marcante foi quando ele me deu toda a sua coleção de livros de cinema. Vários de western, gênero que louvava. Acompanhado a essa coleção também veio um caderninho com inúmeros ingressos de cinema que meu bisavô colecionava e uma edição da Revista de Cultura Cinematográfica (RCC), revista crítica de cinema dos anos 60, editada por ele e uns amigos.

Como uma espécie de retribuição, em 2010, houve uma Mostra do John Ford no CCBB-RJ, e eu aproveitei para assistir o maior número de películas possíveis, tendo direito a garantir dois catálogos (pra lá de 400 páginas), o segundo foi enviado por Sedex para a casa de meu avô em BH. 

Nesse mesmo dia do hospital, tivemos tempo de conversar sobre seu pai, meu bisavô, que também havia sido um grande conhecedor de cinema. Naquele momento, me impressionou como meu avô se lembrava de cada detalhe de vida de seu pai com minúcia. Parecia que a violenta doença que se alojava em sua cabeça não afetava suas lembranças mais profundas e significativas. Fiquei extremamente grato de poder desfrutar dessas várias histórias que até aquele dia eu não tinha o menor conhecimento. Guardei-as em minha memória afetiva.

Fui para Buenos Aires e voltamos a nos afastar. Apesar de termos muito em comum, meu avô não era tão presente quanto eu gostaria, e eu também nunca fui um neto dedicado. Muito se deve à distância física entre nós, ele em BH, eu no Rio. Mas também creio que havia uma espécie de preguiça de ambos. No entanto, esse distanciamento possibilitou encontros bem marcantes. Não saberia enumerar a quantidade de vezes que ele me deu broncas homéricas por eu não estar dando resultados satisfatórios na época de escola. Os sermões sempre vinham acompanhados da história sobre quando ele era criança e não tinha dinheiro, por isso recolhia bosta dos bois para ganhar um trocado vendendo-os como esterco. Então, eu deveria dar mais valor a condição de vida que tinha. Na época ficava injuriado, mas agora sei que havia acima de tudo um zelo, por mais que ele não soubesse exatamente como explicitar isso.

Buenos Aires


Houve um dia em Buenos Aires em que eu caminhei bastante, como gosto de fazer, mas dessa vez estava à procura de um lugar que me desse as condições ideais para fazer uma ligação para o meu avô. Atravessei toda a 9 de Julio e resolvi ligar de um bosque próximo à Plaza Francia. Recostado em uma árvore, tive uma breve conversa, porém incrível. Naquele instante, parecia que meu avô estava recuperado. Sua voz estava cheia de vida e ele não parava de me fazer perguntas sobre os meus dias na Argentina.

No entanto, naquele mesmo mês, viajei à Belo Horizonte para fazer a prova da EICTV (Escola de Cinema em Cuba) e me hospedei na casa dele. Nos poucos dias que passei lá, tudo parecia diferente da nossa conversa por telefone. Soa estranho escrever isso, mas já não era meu avô que estava sentado naquela poltrona, praticamente imóvel e monossilábico. Quando balbuciava algo, pouco se entendia, a doença já o havia consumido mental e fisicamente àquela altura. O sentimento que tive no dia do hospital havia se concretizado.

Buenos Aires
Os meses se passaram e em 17 de julho ele ascendeu deste plano. Para nós, fica uma tristeza quase que inevitável neste momento da perda, mas o que tem que permanecer daqui para frente são seus ensinamentos e sua sabedoria.  Aí, sim, creio que sua essência – e memória – será preservada. Não estive presente ao seu enterro em BH, mas minha mãe contou que, entre as pessoas que falaram em homenagem a ele, alguém disse que por meu avô ser filho único considerava seus amigos como irmãos, por isso ele tinha vários no mundo. Fiquei contente em escutar isso e como filho único também saber que faço o mesmo movimento com os amigos que amo.

Dito isso, pensei que deveria finalizar este texto com alguma imagem. Poderia ser com uma das minhas fotos na infância, em que meu avô Zé me segura com um sorriso no rosto, mas prefiro exaltá-lo com uma imagem que sempre vai me fazer lembrar dele, algo que nos une em sua essência: o cinema. Na sequência final de Rastros de Ódio (dirigido por John Ford), John Wayne caminha para o horizonte. E assim vai meu avô Zé.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Racionais MC's - Cores e Valores



por Thiago Ortman



Após 12 anos de hiato, Racionais Mc's, o mais importante grupo de hip hop brasileiro, retorna com uma nova sonoridade.  E como de costume, as mudanças não foram bem aceitas, ainda mais pelo público do rap, que é tão fiel ao seu estilo de vida.

Com cinco faixas em aproximadamente quatro minutos, o grupo abre Cores e Valores já mostrando a que veio. A ideia de faixas longas e álbuns enormes, sendo o anterior duplo (Nada Como Um Dia Após o Outro Dia), nem passam perto do novo trabalho: entre as faixas, somente uma ultrapassa os quatro minutos. As canções curtas somadas à notícia do lançamento relâmpago geraram dúvidas entre os fãs: muitos acreditaram (e ainda acreditam) que as canções veiculadas não fazem parte da versão final do disco, e são uma espécie de teaser. O fato das cinco primeiras faixas não alcançarem nem 1 minutos cada, poderia ser apenas uma amostras do que estaria por vir. A verdade é que o disco é dinâmico e em pouco mais de 30 minutos,  definitivo.


A marca do grupo de utilizar samples que reverenciam Tim Maia, Cassiano e outros ícones da black music nacional ficou restrita a passagens mínimas do álbum – como na última canção Eu te proponho.  Em Cores e Valores, os Racionais trazem a trap music como referência maior, estilo musical com letras diretas (para não dizer agressivas) e ritmo acelerado, marcado por sub-graves. Difundido no início dos anos 90, foi redescoberto por DJs da seara eletrônica e do hip hop por volta do início da década atual. Artistas que vão de Jay-Z e Kanye West (H.A.M.) à Katy Pery (Juicy) experimentaram o estilo em suas canções.

Em 12 anos seria impossível esperar pelos mesmos Racionais. O próprio hip hop já não é mais um estilo que somente comunica o cotidiano da periferia. Artistas como Emicida e Criolo relatam outras questões, e relacionam outros estilos musicais com o rap, especialmente o segundo.  Além disso, a febre de artistas que cunharam o chamado rap ostentação (e também o funk) nos últimos anos não tem fim. E nesse movimento, os Racionais Mc's podem assumir uma contribuição direta no álbum de 2002, com a reverenciada faixa Vida Loka (Parte II).



Em Cores e Valores, as boas e velhas letras de protesto social e racial se dividem com aquelas que carregam uma nostalgia. O momento que sinaliza essa transição está nas faixas A praça e O mau e o bem.  Até a décima música, o disco oferece um som mais direto e ligado à já citada trap music. A Praça faz menção ao acontecimento da Virada Cultural de 2007, quando o show do grupo – que durou menos de 30 minutos – terminou em um conflito entre jovens e policiais. A crônica claramente repudia a ação policial e a maneira sensacionalista como os veículos de comunicação anunciaram o evento – reiterando a alcunha dada ao grupo: Os Quatro Pretos Mais Perigosos do Brasil. Com a canção seguinte,  O mau e o bem, o álbum adentra o universo da charme/funk music, com letras que relatam momentos passados na vida dos rappers, e segue nessa levada até o fim - momento alto para Quanto vale o Show.




Todos os lançamentos dos Racionais têm um “caminho” semelhante. Repercutem para todas as esferas, muitas vezes sendo condenados por uns e outros – entre fãs e críticos. Mas passam-se os meses, o trabalho começa a ter seu real valor musical reconhecido, e mesmo os “do contra” começam a dar o braço a torcer. Dessa vez, talvez, a mudança será mais difícil de ser aceita pelos fãs mais antigos do grupo. Afinal, poucos poderiam esperar uns Racionais citando 50 Cent (rapper americano contestado pelo próprio meio) no novo álbum (Eu compro) e realizando shows em locais bem longe da periferia.

domingo, 3 de agosto de 2014

AlCast 012: Norma do CONANDA




Lunáticos Ouvintes e Leitores, está entrando no ar mais um ALCast, que vai abordar uma norma do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que está causando grande reboliço. Vinicius Marins conversa com Vitor Azambuja sobre o assunto.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A nova onda dos musicais nacionais


por Brenno Quadros

Durante a pesquisa para minha monografia de graduação, pude atestar que, com toda nossa permeabilidade à cultura norte-americana, quando o assunto é música preferimos a brasileira mesmo. Ao contrário do cinema, com suas salas multiplex exibindo 10 blockbusters made in U.S.A. para cada um ou dois filmes brasileiros (mesmo assim, em horários ingratos, às duas ou três da tarde), a música produzida no Brasil sempre esteve em 1º lugar, seja em vendas, seja em execução pública nas rádios.  Isso quer dizer que, em terras brasilis, Nelson Gonçalves vende mais que Elvis Presley e Roberto Carlos mais que os Beatles. Tonico e Tinoco, a dupla sertaneja recordista absoluta, com 150 milhões de cópias vendidas, bate Nirvana, Queen, Elton John, Michael Jackson e Amy Winehouse, juntos.  Isso, sim, é goleada!

Portanto, além do futebol, a Música Popular Brasileira é preferência nacional, o que deixa mais fácil entender dois fenômenos recentes. O primeiro, do início dos anos 2000, é a onda dos documentários sobre personalidades da nossa música: Vinicius (sobre o poetinha Vinicius de Moraes), Ninguém Sabe o Duro que Dei (sobre Wilson Simonal), Lóki (sobre o mutante atormentado Arnaldo Baptista) e O Homem que Engarrafava Nuvens (sobre o doutor do baião, Humberto Teixeira) são alguns dentre outras produções que arrastaram milhares de pessoas aos nossos cinemas para prestigiar um gênero pelo qual nem sempre morrem de amores.  Isso sem falar nos documentários dramatizados - ou cinebiografias - como Cazuza: o tempo não para, 2 filhos de Francisco (sobre Zezé de Camargo e Luciano), Gonzaga de pai para filho (sobre Luiz Gonzaga e Gonzaguinha) e Somos Tão Jovens (sobre Renato Russo, da Legião Urbana). Os últimos arrastaram não milhares, mas milhões de pessoas para prestigiarem seus ídolos na frente da telona.

O segundo fenômeno mostra-se incipiente e é sempre mais difícil falar sobre algo muito recente. Entretanto, não precisa ser gênio para perceber que os musicais teatrais sobre artistas da MPB já são uma febre com potencial de contágio maior que gripe no inverno. Para assistir Cazuza: o musical, precisei comprar ingressos com mais de três semanas de antecedência, mesmo com o espetáculo há um bom tempo em cartaz. O teatro em que estava sediada a produção (NET Rio, em Copacabana) tem capacidade para 622 pessoas e o espetáculo contava com quatro apresentações semanais (quinta, sexta, sábado e domingo). Cazuza agora está com sessões extras no Vivo Rio, que tem capacidade para, pasmem, 5 mil pessoas! É muita coisa para os padrões de audiência do teatro brasileiro.  Com os musicais Milton Nascimento: Nada Será como Antes (que estabelece um fio narrativo imaginário entre canções do compositor mineiro, sem nenhum diálogo), Elis, A musical e Tim Maia: vale tudo, a mesma coisa – e para esses nem consegui ingressos, mesmo com tentando com boa antecedência.






Cazuza me surpreendeu de forma extremamente positiva: antes de assisti-lo, achava que sua vida já havia sido bastante explorada nos últimos tempos e que um musical seria mais uma variação sobre o mesmo tema. Mas estava enganado: o musical tem produção de nível Broadway, com grandes atores e grandes cantores, além das ótimas canções esperadas. O roteiro, inclusive, corrige injustiças históricas que o filme de 2004, dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho, havia cometido ao omitir os nomes de Ney Matogrosso e Lobão da vida do maior poeta do rock brasileiro nos anos 80.  Foi ali que comecei a entender os motivos de tanto bafafá em torno dos musicais.




Peguei gosto pelo formato, até então desconhecido por mim e pela maioria dos brasileiros, e fui para São Paulo assistir Rita Lee mora ao lado. Em cartaz no Teatro das Artes, o musical sobre a rainha do rock brasileiro (e já que falamos em números, a quarta maior vendedora de discos da história, com 55 milhões de cópias) dá um passo adiante de seus predecessores ao inserir elementos de ficção em sua narrativa biográfica. Na verdade, o musical parte de uma adaptação da biografia homônima de Henrique Bartsh, cujo lançamento pela Panda Books, em 2006, Rita só autorizaria se “não fosse careta” porque “biografia é coisa de defunto”, nas palavras da própria.  

O autor não deixou por menos: subverteu os padrões do formato e criou a história paralela de Bárbara Farniente, “vizinha” de Rita desde criança, que observava pela janela a vida daquela ruivinha magrela na casa ao lado. A relação entre as duas protagonistas vai tomando ares parecidos com a dos personagens Mozart e Salieiri no filme Amadeus, de Milos Forman (1984), com a diferença que Rita não toma conhecimento da existência de Bárbara. Inevitável não lembrar do trecho dito por Salieri ao final do filme, clamando e absolvendo toda a mediocridade do mundo.





O musical é bem menos amargo. A personagem fictícia Bárbara sempre se julgou medíocre e invejava todas as conquistas notáveis que Rita Lee teve ao longo da vida, vivendo continuamente à sombra da imagem idealizada de sua vizinha famosa. Porém, quando as duas finalmente se conhecem no camarim de um show, é Rita quem aponta o óbvio: "Ó, você é muito mais louca que eu, hein? Vai brilhar! Vamos trocar de papéis: é a minha vez de ser careta e ficar dentro de casa." Hoje, Rita é uma senhorinha de cabelo vermelho fogo e tênis AllStar, que largou todos os excessos e que gosta de observar a vida das pessoas nas novelas. De certa forma, o musical deixa em aberto a possibilidade da inveja ser mútua: em algum momento, também os famosos anseiam por uma vida tranquila, anônima e familiar.



Alguns dos principais fatos da vida de Rita Lee estão presentes: a ascensão dos Mutantes, o casamento com o guitarrista Roberto de Carvalho, a gravidez inesperada, a prisão por porte ilegal de drogas, a morte da irmã. A atriz Mel Lisboa (que se lançou anos atrás na minissérie “Presença de Anita”, na Rede Globo) está de volta e encarna com perfeição o sotaque paulista, os trejeitos, a ironia e todo o deboche da rainha do rock. Outro destaque inusitado é o ator Fabiano Augusto, mais conhecido como garoto propaganda das Casas Bahia, no papel de ninguém mais, ninguém menos que Ney Matogrosso (olha ele, de novo), inclusive emulando bem sua voz de contratenor.

Se o nosso futebol anda meio mal das pernas, os musicais nacionais vão muito bem, obrigado. E vocês podem ter certeza de que ainda vão pipocar muitos deles por aqui, porque se tem uma coisa que não falta nesse Brasilzão adentro é talento pronto para trazer aos nossos palcos a vida e a obra de um monte de craques, sob medida para serem homenageados no teatro mais perto de você.

sábado, 21 de junho de 2014

Ainda não completei o álbum


por Thiago Ortman



 A Copa segue e parece vibrante para todos os lados. Desde os chilenos, que invadiram o Rio de Janeiro e, literalmente, o Maracanã, até os manifestantes que optaram pelo jogo político, em meio ao cerco de policiais que se apresentam em número incontável e com assiduidade implacável.

Mesmo estando no meio de dois mundos, entre os que assistem os jogos e os que se manifestam a custo de assistir quase nada, o que tem me deixado mais tenso nos últimos dias é que a Copa está passando e eu ainda não completei o meu álbum. Ok, deixando a ironia de lado, é verdade que estou colecionando figurinhas. Para muitos amigos que bradam “Fifa go home”, isso é uma heresia. Talvez seja mesmo, mas existe uma nostalgia que me faz passar de corpo e alma por tudo que esta Copa significa, mesmo que pareça um tanto contraditório.

Faço os álbuns da Copa desde 94, tempos de Romário e Bebeto, quando as figurinhas ainda eram coladas na base da cola Pritt. Meus pais me incentivavam a ir em frente, colando os Lalas e Valderramas* da vida, mas não me passavam aquele espírito “fominha” de fechar todas as páginas e ter um álbum completo. Aprendi isso por conta própria em 2002, quando ainda não tinha meu próprio salário e enchia a paciência do meu pai para comprar, no mínimo, 20 pacotinhos todo domingo – na época que cada pacote era baratinho.

94, Dieguito ainda estava lá.
Sendo assim, de 2002 para cá tenho tudo completo, mesmo que, dentro de minha senhora desorganização, não saiba dizer ao certo aonde cada álbum está, com certeza em algum lugar do meu bagunçado quarto. Até duas Copas atrás, quando cursava o último ano do ensino médio, costumava trocar figurinhas a rodo com o pessoal do colégio. Acho que rolava até um bafo, mesmo que fosse coisa muito mais comum a gerações passadas. Na última Copa, cursando meu terceiro período de Comunicação Social na PUC, ainda era bem fácil trocar, mas agora, que já não tenho a assistência paterna para a compra, que trocar figurinha não está incluído na minha rotina, nem nos locais que convivo, meu ritmo está lento.

Iniciei a jornada gastando meu salário sem notar pelos pacotinhos de 1R$. A pilha de repetidas começou a crescer rapidamente – o que me deixou nervoso, em parte porque via meu dinheiro indo embora, em parte porque as repetidas aumentavam e não havia troca. Então descobri um amigo para trocar e lá na Gloria, onde fiz minha primeira troca: mais de 50 figurinhas. Para quem não tinha sequer a metade do álbum (que tem mais de 600), foi um sucesso absoluto. Naquele mesmo dia, o amigo falou que ali perto havia um ponto de troca e que vendiam o álbum completo por um preço alto (passei por lá e vi um rapaz vendendo com uma placa “Full Album R$700”, ahhh!).



Mas só um amigo não seria suficiente e a Gloria era distante para fazer trocas. Então reativei uma conta no trocafigurinhas.com. Pois é, em algum momento na última Copa, devo ter trocado figurinhas por ali, um site de troca de figurinhas pela web. Doidera! Foram duas semanas indo aos correios e trocando figurinhas com gente de São Paulo e de outros bairros distantes do Rio (mais longe do que isso eu não botava fé. Imagina, trocar com gente do Acre? Até minha correspondência chegar lá, o cara já teria completado o álbum). Nesse meio tempo, saíram notícias no jornal falando da febre e alguns pontos de troca, o mais próximo no Shopping Leblon, mas já não tenho paciência para shoppings, para trocar figurinhas, então, seria o cúmulo.

Um dia, passeando com o Quino, meu beagle, passei por uma esquina coalhada de gente de todas as idades. Precisei de algumas semanas até tomar coragem. Cheguei a entrar no supermercado que fica ao lado, antes de parar e perguntar “alguém quer trocar?” Até que perdi a vergonha e o que achei que seria rápido me tomou mais de duas horas, olhando bolinhos de figurinhas e pegando todas que necessitava.

No primeiro dia consegui mais de 100 (sendo que quando pisei lá faltavam mais de 180) e conheci todo tipo de gente: uma moça estava “substituindo” o marido, que estava com a perna quebrada; uma senhora estava ajudando o sobrinho, que levou o álbum à uma festa e foi roubado; um cara tinha um fichário com zilhões de figurinhas – provavelmente já tinha completado vários e devia estar fazendo um mercado negro com eles; gente que já estava completando o segundo álbum, além de uma criançada boa, que me fez lembrar ainda mais da minha primeira coleção de 94.

Estou sem tempo para retornar àquela esquina, mas sei que existem retardatários como eu. Ei de fechar até o fim da primeira fase, não teria heresia maior do que pedir as figurinhas que me faltam para a Panini, editora que organiza o álbum. A verdade é que a gente cresce, gosta menos ou mais da Copa do Mundo, mas a vontade de colecionar estará sempre ali. Talvez na próxima eu me convença que já tenha passado “da idade”, mas aí eu invento que é para um sobrinho, que foi roubado numa festa.

*Referência a Alexi Lalas e Carlos Valderrama, jogadores emblemáticos por seu visual e qualidade de futebol, que defenderam os EUA e a Colombia, respectivamente, em 1994.


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Rubem Fonseca e o poeta

por Leandro Müller  



Queridíssimo Lerme

Você é apenas um bebê e ainda vai levar alguns anos até que alcance o entendimento das coisas que tratarei aqui, mas como seu tio e padrinho, quando recebi o convite para escrever um pouco sobre Rubem Fonseca, foi em você que pensei para explicar as razões do porquê conhecer a obra desse escritor.

Com o passar dos anos, você perceberá que não faltarão pessoas te dizendo para ler, e indicando o que ler (geralmente tentando obrigá-lo). Contudo, a maioria não te convencerá. Eu mesmo passei incólume pelos livros até o início da vida adulta. Só mais tarde me dei conta de que a literatura não está só nos livros, ela se esconde nas estórias, pode ser um filme, uma série, um jogo, uma música. Ela nasceu na tradição oral e foi se adaptando, se apropriando dos suportes que a tecnologia inventava. Por isso, Lerme, gostaria que você soubesse que ler nada mais é que escutar uma narrativa.

Entre esses que contam estórias (fictícias ou reais), devemos escutar a dois tipos de pessoas: as que têm paixão por seu tema (e falam sobre ele com entusiasmo) e aquelas que sabem do que estão falando, que conhecem o assunto sobre o qual discorrem, ou que ao menos acreditam verdadeiramente conhecê-lo. Rubem Fonseca pertence simultaneamente a essas duas categorias.

Seu notório conhecimento sobre os temas a que se dedica fica evidente em um conto, ou quase novela, chamado Romance Negro, onde faz citações de inúmeros escritores habilidosos, entremeados por uma verdadeira aula de história do gênero policial. Somos convidados a um jogo de adivinhação enquanto aprendemos a distinguir as diferenças entre a escola americana e a escola inglesa de tal literatura “obscura”. Um prato cheio para quem gosta de aprender com quem sabe, como eu.

Os especialistas na obra deste escritor irão apontar várias virtudes em seus textos (e até alguns defeitos, dependendo de quem for o crítico). Mas não é por causa do que eles dizem que você deve ler, e sim pelo próprio autor, porque ele é capaz de capturar exatamente o que sentimos. Por exemplo, veja esse trecho do conto O Cobrador, que parece ser o predileto da maioria e que está presente obrigatoriamente em tudo que se diz sobre o Fonseca: “A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.(...) Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol. (...) Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta...” Espero que nunca aconteça para você o dia em que achará que a sociedade lhe deve, e que chegou a hora de cobrar. E espero que não se utilize jamais das mesmas vias que o personagem deste conto.

Agora vou lhe contar como esse autor realmente me arrebatou. Foi numa tarde comum, no meio de uma semana ordinária, nos meus saudosos dias de livreiro, que o leitor Rubem Fonseca entrou na livraria e me pediu que lhe indicasse a seção de poesia, para onde o conduzi. Um tempo depois, já novamente imerso nas atividades da lida cotidiana, senti que ele me tocava calmamente o ombro, com um sorriso de menino, chamando-me a atenção para os livros que levava: poetas ingleses românticos. Foi ali que me dei conta de algo maior, que me revelou a verdadeira razão para se ler aquele escritor...

Você gosta de segredos, Lerme? Então, preste atenção, porque este pouca gente conhece: apesar de o definirem como pai do romance policial no Brasil, na verdade, Rubem Fonseca é um poeta. Um poeta apaixonado. Não sei disso simplesmente pelo sem número de vezes que poetas e poemas se escondem sutilmente em suas obras, como Baudelaire* e Camões**, mas pela forma como desenvolve temas propriamente poéticos, como o fascínio pelos ossos ressaltados das mulheres, que só um poeta consegue admirar e que ele deixa à vista nos contos Mandrake, O corcunda e a Vênus e no já mencionado Romance Negro. O fascínio é um sentimento lindo e raro (muitas vezes confundido com a obsessão, mas sobre isso conversamos em outra ocasião), principalmente neste mundo em que rapidamente nos acostumamos a tudo. Nunca devemos perder a capacidade de nos pasmar!

Foram essas circunstâncias, Lerme, que me levaram a gostar do Rubem Fonseca. Espero que elas sirvam de guia para que você encontre suas próprias razões para também apreciá-lo, e a outros autores que venham a ser seus favoritos.


Comece por este aqui:  64 contos, Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, mas não deixe também de ler os romances Bufo & Spallanzani e Diário de um Fescenino. 


Notas:

*O Baudelaire escondido:
“(...) vendo-a distanciar-se agile e noble, avec as jambe de statue, até que ela desapareceu no meio da multidão.” (Mandrake. p.309.)


BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


XCIII
A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


XCIII
A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!


**O Camões escondido:
“Isso aqui: transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de muito imaginar... que mais deseja o corpo alcançar? Que diabo o poeta quer dizer com isso?” (O corcunda e a Vênus de Botticelli. p.720.)

Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
que, como o acidente em seu sujeito,
assim co’a alma minha se conforma,

está no pensamento como idéia;
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um empreendedor nômade no mundo da música


por Thiago Ortman



O cineasta francês Vincent Moon é provavelmente o maior nômade da música atual. Surgiu para o mundo com uma ideia simples e inovadora: filmar artistas famosos fazendo sua música nas ruas. Em 2007, com o selo/site La Blogothèque, colocou o jovem Zach Condon, mais conhecido como Beirut, para cantar e tocar seu trompete em meio aos cafés parisienses. Em 2008, acompanhou a banda indie Arcade Fire durante a turnê do álbum Neon Bible e registrou tudo no making of Mirror Noir. Seu estilo de “videoclipe” ficou mundialmente conhecido, e foi replicado em todos os cantos.

No fim de 2008, Moon partiu para uma nova investida e iniciou uma jornada sem fim pelo planeta - pelo menos até o momento. Partia de um canto ao outro com seu mochilão, filmando tudo que considerava relevante relacionado à música. Fez uma travessia pelos mais distintos estilos musicais, visando em especial os artistas alternativos e de cancioneiro regional.

Três anos mais tarde, Vincent Moon lança a Collection Petites Planètes (Coleção Pequenos Planetas, ao pé da letra). O francês basicamente deu nome aos bois e criou uma marca para a exploração etnográfica musical que já estava fazendo há algum tempo. Polonia, Chile, Brasil, Islândia, Singapura, Austrália e Filipinas foram alguns dos países que Vincent cruzou para registrar suas raízes musicais tradicionais.

Com um estilo visual próprio, muito contraste e priorizando as cores amarela e preta, o cineasta independente trabalha solitário ou com pessoas com quem faz amizade no caminho. Em sua primeira passagem pelo Brasil, entre 2010 e 2011, Vincent selecionou um repertório amplo de artistas, que passava por ícones como Ney Matogrosso, Tom Zé e Naná Vasconcelos, além de encontrar jovens apostas, como a finada banda carioca Letuce, o multi-instrumentista paulista M. Takara, e a ainda desconhecida Gaby Amarantos.

Moon retornou ao país no ano passado para filmar gente que hoje tem sua carreira mais consolidada, como Criolo, BNegão e Metá Metá – a série chama-se Sons do Brasil 2013. O mais interessante nos registros do francês é que, muitas vezes, ele faz com que seus “personagens” encontrem um lugar afetivo no registro. No vídeo com Criolo, ele filma o rapper numa roda de samba no Grajaú (de São Paulo), seu local de nascença, para depois mostrá-lo ao lado do amigo, Projota, também rapper, no bairro paulista, em um show emocionante.

Através dessa série imensa de vídeos, Vincent Moon abre frente para um tipo de arquivo musical que harmoniza com os intuitos da web. O francês colabora para gerar um acervo audiovisual fundamental para a música mundial, e tudo isso com creative commons, isto é, com licenças abertas para quem quiser baixar os vídeos e passar para frente sem problemas. Que Vincent prossiga registrando a música pelo mundo a fora.



Um vídeo com a extinta banda carioca Letuce, o grande Jards Macalé e Criolo:


Take Away Show _ LETUCE from Vincent Moon / Petites Planètes on Vimeo.



O PATO • a very short portrait of JARDS MACALÉ from Vincent Moon / Petites Planètes on Vimeo.



◊ Sons do Brasil 2013 ◊ CRIOLO ◊ from Vincent Moon / Petites Planètes on Vimeo.


Entrevista com Vincent:


Viajantes | Vincent Moon from horto filmes | clara cavour on Vimeo.